Duas questões envolvem neste momento a atividade da Câmara dos Deputados: a liminar de um juiz de Brasília suspendendo a candidatura de Rodrigo Maia a presidente da Mesa e a participação ou não de forças de esquerda em uma chapa encabeçada pela direita. Ambas merecem comentários.
1) A primeira questão decorre de uma investida jurídica sobre o Legislativo. Um juiz de Brasília, através de uma liminar, tenta intervir na organização interna de uma eleição de um dos Poderes da República, desconsiderando que a Constituição diz que “compete privativamente à Câmara dos Deputados: IV – dispor sobre sua organização, funcionamento (...) etc.” (Art.51). Portanto, a arbitrariedade é flagrante. E não é a primeira vez que setores do Judiciário agem dessa maneira.
Em 25 de novembro de 2015, o senador Delcídio do Amaral, que teve conversas absurdas gravadas, foi preso por ordem do ministro Teori Zavascki, agora falecido. A Constituição diz que “(…) os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”. (Art. 53, §2º).
O ministro interpretou que “flagrante de crime inafiançável” poderia ser substituído por um “estado de flagrância” e o senador foi preso. O Senado, premido pela mídia direitista e pela opinião pública por ela formada, acatou a prisão ilegal. Poderia ter mandado soltar o Delcídio e, em seguida, cassado seu mandato.
A 21 de outubro de 2016, um juiz de Primeira Instância autorizou o cerco e invasão do Congresso por viaturas e pela Polícia Federal, para prender funcionários da Polícia Legislativa. O presidente do Senado, Renan Calheiros, reagiu à altura e até chamou de “juizeco” o juiz.
A 5 de dezembro de 2016, o ministro Marco Aurélio, de tantos pareceres profícuos, decidiu afastar por liminar o presidente do Congresso, a partir de inferências que se revelaram equívocas. O presidente Renan não recebeu a notificação, teve o apoio da Mesa do Senado e o Pleno do Supremo derrubou a liminar.
Tudo isto mostra que o Legislativo, para não ser reduzido a um subPoder, monitorado pelo Judiciário e até por juízes de Primeira Instância, deve defender com força suas prerrogativas e enfrentar com decisão as ameaças.
O juiz que quer intervir na eleição da Mesa, a partir de provocação de setores de direita, reconhece que a Constituição não trata das consequências de um mandato-tampão para uma nova eleição da Mesa. E quer substituir essa omissão constitucional pela sua interpretação de que o importante agora é garantir o rodízio. Na verdade, o que não está proibido na Constituição está permitido. E pronto.
Independente disto, o objetivo fundamental que hoje perseguimos é o da estabilidade das instituições e o da garantia das prerrogativas do Legislativo, inclusive sua “autonomia e independência”.
Espera-se que Rodrigo Maia, no cargo de presidente da Câmara, defenda a instituição. E que, com muita firmeza, também assim procedam os que não participaram do golpe parlamentar há pouco desfechado em nosso país.
2) A segunda questão é a da eleição da Mesa da Câmara. Junto com a eleição da Mesa do Senado, geralmente suscita polêmica, talvez porque seja confundida com uma eleição geral. E, contudo, elas são muito diferentes.
Em uma eleição geral, democrática, todos partem, em princípio, de condições iguais, ninguém ganhou nada preliminarmente, qualquer partido pode lançar seus candidatos a qualquer cargo e os eleitores é quem irão decidir quem ganha ou perde.
Numa “eleição” para uma Mesa da Câmara ou do Senado isto não ocorre. Ela parte do fato de que a eleição geral já se realizou e já elegeu parlamentares de diferentes partidos, sendo que alguns desses partidos saíram bem mais fortes que outros. A chamada “eleição” da Mesa busca organizar o grupo que vai dirigir esse conjunto heterogêneo, eleito pelo povo.
O Regimento Interno da Câmara foi elaborado em 1989, pouco depois do fim da ditadura. Era necessário impedir que o partido ou bloco majoritário açambarcasse toda, ou a maior parte da Mesa diretora. Aí deveria ser garantida a representação dos partidos minoritários, o que foi feito estabelecendo-se que a proporção do número de deputados eleitos por partido seria o critério para definir quantos cargos um partido teria na Mesa.
O Regimento consolidou esta metodologia, que é democrática, porque respeita o resultado da eleição havida e organiza, a partir daí, a chamada “eleição” da Mesa. Ponho entre aspas esta “eleição” para a Mesa, porque ela é a consequência da eleição geral que houve. Ganhará a Mesa quem ganhou a eleição passada.
O funcionamento desse mecanismo é descrito no art. 8º do Regimento: “Na composição da Mesa será assegurada (...) a representação proporcional dos partidos ou blocos parlamentares que participem da Câmara (...)”. O parágrafo 4º do art. 8º diz: “As vagas de cada partido ou bloco parlamentar na composição da Mesa serão definidas com base no número de candidatos eleitos pela respectiva agremiação, na conformidade do resultado final das eleições proclamado pela Justiça Eleitoral”. E mais: “a distribuição dos cargos da Mesa far-se-á por escolha das lideranças, da maior para a de menor representação, conforme o número de cargos que corresponda a cada uma delas”.
Com isso os partidos menores participam da Mesa, na medida de suas forças. A chapa resultante dessa regra era, antigamente, chamada “chapa do acordo”.
Chegamos assim ao pleito de 2014. Na eleição para a Câmara, foram sufragados partidos com o dobro, o triplo, dez, vinte vezes mais força que outros. Portanto, na “eleição” para a Mesa, esses partidos não concorrem em igualdade de condições: uns já entram na “eleição” com direito a alguns cargos e outros não. O partido ou o bloco que conseguiu eleger mais deputados ganhou, por essa razão, o direito de dirigir a Mesa, quem ficou em segundo lugar ficará com o segundo cargo mais importante, e assim sucessivamente.
Mas, como essa regra é para funcionar em uma Casa política sujeita a imprevistos, o Regimento abriu espaços para alternativas e manobras legítimas e secundárias. Prevê, por exemplo, que a regra geral deve ser cumprida, “sem prejuízo de candidaturas avulsas oriundas das mesmas bancadas (...)”. Pode acontecer assim que algum deputado queira disputar o cargo a que seu partido ou bloco tem direito, contra o candidato apresentado pela liderança do seu próprio partido ou bloco. E pode ocorrer que deputados ou alguns partidos resolvam organizar uma chapa completa, para disputar com a “chapa do acordo”.
Um partido define sua posição frente a essas variáveis, em função das vantagens políticas imediatas e a longo prazo que teria. Pode julgar, por exemplo, que será positivo “marcar posição”. A força política que assim proceder marcará sua posição, efêmera, porque só por poucos dias, em geral ficará isolada, e deixará de participar da Mesa, proporcionalmente à sua força, durante dois anos. Perde também condições para pleitear posições de destaque nas comissões e espaços para negociações em batalhas futuras importantes.
Agora, na Câmara dos Deputados, a chapa constituída segundo a metodologia regimental acima descrita, é encabeçada por um partido ou bloco de direita e tem cargos para os partidos ou blocos de esquerda. Isto não tem absolutamente nada a ver com apoio da esquerda a posições de direita, mas decorre exclusivamente do fato de que a direita conseguiu, nas eleições passadas, mais força que a esquerda.
Há poucos anos, o eleitorado se inclinou para os partidos e blocos à esquerda e tivemos algumas vezes mais destaque na Mesa. Até um comunista chegou a presidi-la. Agora, a esquerda perdeu força. Voltará a presidir a Mesa da Câmara, logo que voltar a ganhar as eleições junto ao povo.
*Haroldo Lima foi deputado Constituinte, diretor da Agência Nacional de Petróleo. É membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil
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